Goiânia é o berço do underground no Brasil, a nossa seatle brasaileira. Um dos comandantes deste navio desenfreado chama-se, Wander Segundo, conhecido como "Segundo". Produtor Musical, músico, professor, dono do selo e gravadora Two Beers or not Two Beers Records. Sem esse cara nossa capital não teria a força que tem no meio alternativo. Então convidamos a todos vocês para conhecer esta grande personalidade do rock and roll Goiano.
Nos conte um pouco sobre a sua vida, desde o nascimento até formação educacional?
Bom eu sou o Wander Segundo, nasci aqui mesmo em Goiânia na virada dos anos 70 pros 80 e morei minha vida inteira aqui. Desde cedo eu já tinha propensão pra marginalidade e pra polêmica kkk dava muito trabalho na escola, era o palhacinho da turma ao mesmo tempo que sofria bullying por ser gordo, então acho que a vida toda eu procurei tentar me expressar de alguma forma, até porque eu sou muito tímido e calado o que vira até um paradoxo, mas enfim acho que a propensão vem desde criança mesmo.
Eu cresci num ambiente musical, meu pai tinha uma coleção considerável de vinis e ouvia música o tempo todo e teve até uma banda aqui nos anos 60 que se chamava Os Prisioneiros do Rock que ele e uns amigos dublavam o Elvis num programa de TV local. Então minha curiosidade por música vem daí e da minha curiosidade de olhar os discos que tinha aqui em casa, e logo eu comecei a ouvir rádio o dia todo e gravar as músicas num gravador de cassete que eu tinha ganhado.
Então eu ouvia os pioneiros do rock por causa do meu pai que me apresentou Beatles, Elvis, Little Richard, Chuck Berry, Jovem Guarda e tudo que tocava no rádio em meados dos anos 80, que diferentemente de hoje a programação era bem plural e diversificada, tocava desde Fábio Jr e Joanna até Depeche Mode e AC/DC, não tinha um estilo predominante da moda igual nos dias de hoje, então eu ouvia muita coisa diferente e fui aprendendo a diferenciar os artistas e estilos desde cedo. Ai chegou a adolescência e as primeiras festinhas e não demorou muito pra eu virar DJ, comecei no finalizinho de 91 com 12 anos e com 13 já tinha minha primeira equipe de som com o DJ Marquim (Marcus Freitas) que hoje mora em Montreal e tem um projeto de discotecagem fodasso de música brasileira por lá e mais tarde com o irmão dele o Badeco (Thiago Freitas) que hoje é um dos DJ´s mais foda de Brasília.
A gente levava o som (quer dizer nossos pais e avós porque a gente era tudo de menor) primeiro pra festas de amigos da escola e pouco tempo depois a gente já tinha agenda lotada. A equipe durou até 98 e nesse mesmo ano eu virei residente da Soviet, uma boate de rock que ficou bem famosa na época e daí eu fui passando por inúmeras boates e festas que rolaram na cidade Casanostra, Garage Café, Metropolis, Horda, Capim Pub, Suvaco etc.
Paralelamente a isso tudo eu ainda estudava e tirava notas boas kkk eu era o típico aluno que os professores odiavam pq eu fazia bagunça e tirava nota boa, e ainda ia virado pra aula das festas que eu fazia como DJ. Fiz vestibular pra Direito na Católica em 99 e no ano seguinte pra Filosofia na UFG.
Por motivos políticos e ideológicos eu acabei abandonando o Direito que na real era um curso que eu fazia por pressão familiar e eu até gostava, mas odiava as pessoas e o ambiente, por motivos óbvios hahaha. Larguei o curso pela metade e me formei em 2005 na UFG, em 2011 conclui o mestrado, que esse ano virou meu primeiro livro A Sociedade de Consumidores e a Perversão do Animal Laborans – Uma análise de Hannah Arendt sobre nossos tempos sombrios que saiu pela Editora Dialética e hoje eu tento entrar no doutorado.
Quando e como você começou a atuar na cena rock independente de Goiânia?
Eu comecei a frequentar a cena em 93 no show do RDP no Ginásio de Campinas, foi o primeiro show que eu fui e meu primeiro contato com as bandas daqui ao vivo.
Eu já sabia da cena, porque todo sábado de manhã eu ia pro centro com o meu avô e passava nas lojas e sebos atrás de discos e gibis, e o centro de Goiânia nos anos 90 era lotado de lojas de disco tanto alternativas quanto as lojas maiores, então era tipo um paraíso, ainda mais que eu fazia muita festa e sempre tinha que ficar indo em loja atrás das últimas novidades, não tinha internet na época então o jeito era comprar o disco e era feio demais se alguém numa festa pedisse uma música da moda e o DJ não tinha, queimava o filme total, então era obrigação ir nas lojas pelo menos uma vez por semana. E nos anos 90 a juventude já era estilizada e dividida no que chamavam na época de “tribos urbanas”, e pras festas a gente precisava montar dois sets um guiado pelas rádios FM (que incluía Dance Music, Axé, Pagode e Pop Rock) e um set guiado pela MTV (que ai já era predominantemente Metal, Grunge, Indie, Rapcore e Hip Hop) Então eu tinha que ir em dois tipos de loja, porque as coisas mais pesadas só rolavam em lojas menores tipo a Subway e Buraco e lá eu via os flyers dos shows, e eu gostava de ir principalmente numa loja de gibis na Araguaia com a Paranaíba que o dono era muito gente boa e tinha todos os gibis da Marvel antigos bem baratos e alguns discos... e que tá firme e forte até hoje, que é a Hocus Pocus o lugar mais importante da cena rock e underground de Goiânia desde aquela época. Mas fora desse rolê consumista eu também passei a ir conhecendo pessoas que tinham banda e sonhava em montar a minha própria.
E por Goiânia ser uma cidade de médio porte acaba que todo mundo interage com todo mundo das maneiras mais inusitadas, ainda mais naquela época que a cidade era tão carente de atividades culturais que não envolviam a música sertaneja.
E as maneiras de se relacionar eram muito diferentes, nem celular a gente tinha, então era muito normal fazer amizade com alguém em algum lugar esperando seus amigos e descobrir que essa pessoa é amiga de outros amigos que você tem de outro rolê o que comprova a velha teoria de que Goiânia é um ovo.
A cidade não tinha a estrutura que tem hoje de estúdios, locais pra show, pelo contrário, naquela época roqueiro era marginal e mal visto, andar vestido de preto era motivo pra ser zoado por agroboys e playboys na rua, ser xingado por velhos e velhas, ver as mães dos amigos mandando eles se afastar de você, tomar bacu toda vez que uma viatura passava perto, dentre outras histórias escabrosas que cada um de nós tem pra contar.
Então pra encarar aquilo tudo tinha que ter uma paixão imensa, talvez por isso que boa parte dessa galera da minha geração continua nos eventos de rock até hoje, realmente era um estilo de vida que a gente tinha que passar por cima de tudo pra poder manter e isso acabou deixando a gente muito unido e com um espírito de coletividade no ar, uma sensação de pertencer a algo maior do que você e que você está ajudando a construir fazendo a sua parte junto com os demais e isso é o que move a cena e faz ela durar tanto tempo.
Eu comecei então como público, indo nos shows e comprando material das bandas, mas não ia muito pq tinha que conciliar com o trabalho de DJ, mas ao mesmo tempo fui conhecendo o pessoal de algumas bandas, e tentando montar a minha, durante dois anos a banda era basicamente eu e mais dois amigos e eu queria tocar batera, enchi o saco dos meus pais até eles me darem uma no natal de 96, dai juntei com o Marquim e o Badeco que já eram DJ´s comigo e começamos a tirar uns hardcore melódico aqui em casa brincando, foi quando eu percebi que era melhor baixista que baterista. Ao mesmo tempo eu montei o Pay Day com o André que já tocava comigo antes e mais uns caras e eu queria tocar punk rock e ele grunge e o vocalista queria tocar pop rock e a gente acabou tocando um pouco de tudo isso e até gravamos uma demo em 97 (uma das músicas foi reaproveitada pelos Canalhas anos depois) que não foi lançada porque o baterista saiu.
O Renzo que era o vocalista falou de um cara da sala dele que vivia tocando air batera na aula e ia chamar ele. Ok, a gente ensaiava aqui em casa e quando eu vi percebi que era um cara que eu conheci numa festa que eu fiz e ficava pedindo pra eu tocar Metallica, e eu toquei Enter Sandman e ele falo: não toca uma do Ride The Lightning, ai começamos a conversar hahaha Esse cara era o Daniel e dois ensaios depois o Pay Day se desfez e nascia o Corja. Isso foi no finalzinho de 1997.
A partir dai eu comecei a realmente atuar na cena, o Daniel estudava na Escola Técnica e o Adelson, nosso primeiro vocalista também, e lá era tipo o epicentro da cena underground, muita gente da cena estudava e frequentava lá, o terceiro Goiania Noise tinha sido no miniginásio da escola e disso surgiu também o Rock Tech um festival underground promovido pelo grêmio estudantil da escola, que tinha co-organizado o Noise com o Léo e o Márcio Jr, que ainda nem eram Monstro e resolveu fazer seu próprio festival e que evoluiu pro Miscelânea um ano depois.
O primeiro show do Corja foi no pátio da Escola Técnica e de lá já convidaram a gente pra tocar no Rock Tech e daí pro primeiro Domingão da Brodage no Cantoria organizado pela Liga Hardcore que era um coletivo de alunos e alunas da Escola Técnica. Com o Corja estabelecido na cena eu resolvi fazer um show na casa do lado da minha, que meu pai recém aposentado ia montar o escritório dele, a casa estava semi destruída mas tinha energia e eu soltei a ideia num dos Domingão da Brodage e chamei as bandas lá mesmo.
Foi tudo organizado na tora numa tarde e milagrosamente deu tudo certo, várias bandas tocaram (Imp, Self, Hang the Superstars, Korvax, Neurose Urbana e Desastre).
Quando faltavam duas bandas pra acabar (o Corja e o C(h)oice que ia fazer o primeiro show lá) apareceu um cara que viu a galera e enturmou por lá... daí alguém que tava no show falou que tinha visto ele como procurado no Chumbo Grosso e de repente a gente pega o cara tentando pular o muro pra dentro da minha casa e daí fomos obrigados a acabar o show e mandar todo mundo embora... mas dali nascia a Two Beers or not Two Beers como produtora de eventos... isso era maio de 1999. Alguns shows que deram ré e um festival no DCE cancelado pela AMMA depois, em 2001 a Two Beers começa a atuar como selo e lançar bandas locais.
Quais os desafios de comandar um selo como a Two Beers or not Two Beers Records?
Mais fácil responder o que não é desafio. Tudo é desafio pra um selo underground num país que não dá a mínima nem pra cultura mainstream e ainda por cima é culturalmente formado pela cultura do “jeitinho brasileiro” que implica em muita coisa boa, temos milhares de referências ao “bom malandro” na nossa vasta e rica cultura, mas também implica no fato de todo mundo se orgulhar e bater no peito de levar vantagem em tudo e glorificar o status a partir disso.
Então culturalmente o brasileiro acha maravilhoso quando consegue as coisas de graça, e certas vantagens que ele possa contar na mesa do buteco no final de semana, o que é até saudável quando se trata de alguma multinacional ou algum patrão ou estabelecimento explorador, é luta de classes, é ação direta; mas não pra algo que depende unicamente da boa vontade e da ajuda das pessoas envolvidas com a cena underground DIY, então acaba que muitas pessoas não dão o suporte necessário pra cena se manter com as próprias pernas o que faz com que produtores e bandas fiquem na precariedade de recursos pra realizar as coisas. As pessoas em geral e isso não quer dizer só o público, mas também integrantes de bandas e produtores tem que fazer sua parte pra coisa acontecer e melhorar.
O underground só é tosco e precário por falta de suporte de quem frequenta a parada, a parcela que entende isso e colabora do seu jeito e com o que pode consegue garantir que o negócio funcione com muito sacrifício, eu tenho que tirar tudo do bolso pra poder realizar as coisas que a Two Beers faz e o retorno é muito pouco, mesmo vendendo CD a 10, 15 reais que é extremamente barato as pessoas não compram como deveriam, se cada pessoa comprasse um CD de 10 reais por mês o selo teria lucro e condições de fazer eventos com som melhor e trazer mais bandas de fora pra tocar aqui,
Se cada pessoa fosse em um evento por mês e pagasse ingresso as bandas receberiam após o show, teriam mais dinheiro pra ensaiar e poder fazer novos materiais e o selo poderia dar mais suporte pras bandas tocarem fora. Na gringa funciona assim, toda banda tem seu equipamento, recebe grana após os shows e ainda vende material.
Claro que vivemos num país de terceiro mundo e as condições atuais estão horríveis pra geral, e toda essa movimentação do underground se torna supérflua quando mal se tem grana pra comer, e Two Beers nunca foi um selo elitizado, temos orgulho de cobrar o mais barato possível pra ter a maior diversidade e pluralidade nos nossos eventos,
e na moral as pessoas que não tem condições pra entrar num evento nosso ou comprar material merecem pelo menos entrar de graça nos shows, a cultura em geral tem que ser acessível pra todos.
O grande problema é quem tem grana e vira as costas pra todo o trabalho que a gente faz e prefere pagar caro pra alguém que tem estrutura e apoio do que apoiar quem depende disso... por status, por querer levar vantagem, por acreditar no mito que estamos enriquecendo as custas do dinheiro das entradas e mais um monte de histórias e desculpas esfarrapadas que inventam por ai.
Porém não é a rentabilidade que move a Two Beers e enquanto eu puder coloco meu dinheiro no selo e deixo de comprar coisas pra mim ou de sair pra vários lugares que rolam por ai, tem sido assim desde o começo, mas se todo mundo ajudasse eu seria uma pessoa mais feliz e menos chata e o selo como coletivo poderia fazer mais e melhor pra geral.
É só uma questão de consciência de cada pessoa de que o do it yourself trilha um outro caminho que vai contra o caminho estabelecido pelo capital e pelas grandes empresas do entreterimento, buscando uma outra forma de atuar que valoriza mais a arte e as relações de amizade e cooperação ao invés da constante competição de mercado predominante, e por isso não aceitamos ser controlados nem pelo Estado e nem pela iniciativa privada (isso não quer dizer que não aceitamos incentivos ou doações, só não entramos no jogo das curadorias, do toma la da ca, ou do “tem que dar retorno” pra ser bom e nem aceitamos grana de quem vai eticamente contra os nossos padrões de pluralidade, diversidade e união), montamos nossa própria estrutura e ela precisa do envolvimento e engajamento das pessoas pra se manter.
Falando um pouco sobre a sua banda “Os Canalhas”, Como se dá o seu processo criativo?
Bom pra ser justo com os meus companheiros de banda eu vou ter que falar do processo criativo tanto do Corja quanto d´Os Canalhas até porque eles são bem diferentes um do outro e ao mesmo tempo que se opõem se complementam. Como a pergunta foi pr´Os Canalhas vou responder primeiro e depois do Corja.
Eu costumo brincar que Os Canalhas funciona como uma indústria de reciclagem da Indústria Cultural (tipo como se o Adorno montasse uma banda punk em Frankfurt kkkk), onde a gente subverte sucessos populares e levam eles pro underground, e a postura estética da banda brinca bastante com o clichê e o estereotipo do rockstar midiático, essa é a grande piada e a graça da banda e o principal motivo da gente ter montado ela pra durar um show e ela já durar 20 anos. Atualmente eu me ocupo da parte criativa da banda praticamente sozinho, “componho” em casa e mostro no ensaio onde os outros integrantes dão ideias e pitacos.
Quando o Bicudo tocava a gente era tipo Lennon e McCartney, Strummer e Jones, Jagger e Richards, a gente passava tardes inteiras regadas a cigarros de artista, refri tosco e milhopã e inventava as piores modas e piadas sem graça do mundo e colocava nas músicas.
Já o Heavy que é o espírito da banda é o responsável por tentar organizar a baderna no estúdio pra sair pelo menos um pouco digerível, o Luiz depois que entrou também faz isso e contribui com várias ideias massa pras músicas também, e todo mundo que tocou na banda contribuiu com suas ideias também, então apesar de eu trabalhar sozinho em casa e trazer vários esqueletos prontos pro ensaio o processo é democrático e todo mundo tem poder de acrescentar ou vetar e a maioria decide.
Basicamente o processo criativo d´Os Canalhas se resume a pegar uma música que todo mundo conhece de artistas populares e fazer uma versão totalmente diferente da original incorporando estilos do underground que vão variar desde o punk rock até o death metal, passando pelo máximo de referências da cultura pop que a gente conseguir colocar e essas referências simplesmente brotam, e essa é a graça da coisa toda.
Uma palavra pode mudar todo o sentido de uma letra, um acontecimento político ou social pode gerar uma paródia, uma sequência de acordes pode aproximar estilos e artistas completamente opostos e por ai vai...
A grande questão dos Canalhas e a grande dificuldade da banda é justamente a versatilidade que o conceito da banda impõe e isso é bem problemático e levou muitas pessoas a sair da banda porque convenhamos não é todo mundo que consegue tocar numa banda que muda de repertório a cada show e faz vários shows por ano.
É uma situação bem atípica no underground e que vem das bandas de baile que tocam a noite toda um repertório gigantesco até o sol raiar. As bandas underground autorais geralmente tem um repertório fixo e tem que ensaiar bem menos. Além de tudo isso a gente ainda quer tocar tudo direitinho e fazer um show de qualidade, e isso gera uma pressão enorme devido ao perfeccionismo.
Eu tenho que assumir que já fui bem babaca e chato com gente que passou pela banda em nome desse perfeccionismo que hoje eu vejo ser completamente desnecessário e que teria sido bem melhor ter mantido o clima descontraído que a banda propõe nas músicas e no palco.
Já o Corja funciona de uma maneira totalmente diferente nos moldes de uma banda underground “normal”.
No começo fazíamos as bases em casa e levava pro ensaio e a partir dela a gente fazia a música. De uns anos pra cá começamos a criar as bases e as músicas coletivamente na hora no ensaio e tem funcionado muito bem assim.
Quais dificuldades de manter uma banda por tanto tempo?
Banda é como um casamento, é uma relação humana profunda entre três ou mais pessoas que tem que ser guiada pelo amor e pela tolerância pra funcionar por muito tempo. E assim como os casamentos as relações desgastam e ficam intragáveis as vezes.
Tem que saber lidar com o outro e com as vontades, defeitos, qualidades e manias da pessoa e quando dá certo é a melhor coisa do mundo, vira uma parte essencial da vida que você não quer abrir mão de jeito nenhum. Eu posso dizer que me tornei uma pessoa melhor graças a ter banda e aprender a respeitar e tolerar o outro e ao mesmo tempo me impor sem precisar ser agressivo ou autoritário. Isso num mundo cada vez mais atomizado e individualista como o nosso chega a ser subversivo, fora que ainda funciona como uma ótima válvula de escape pra todos os problemas do dia a dia... recomendo a todas as pessoas, bem melhor que ir ao shopping ou a igreja.
Já teve treta com integrantes ou alguma curiosidade engraçada que já rolou em shows ou ensaios?
Como eu disse banda é casamento, já teve muita treta e muito momento engraçado nos shows e nos ensaios, eu ficaria um dia inteiro lembrando e contando... acho que a melhor história foi quando eu caguei da janela do ônibus quando o Corja foi tocar no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2003 (essa história só rola contar se for com a banda toda ahahahah). E a vez que Os Canalhas estavam tocando numa casa aqui em Goiânia e as pessoas fecharam a porta e saíram do lugar do show e a gente ficou lá tocando sozinho pra ninguém.
Como foi realizar o evento Ocupem as Ruas?
Cara sem dúvida nessas duas décadas de produção underground o Ocupem as Ruas foi a melhor experiência que eu já tive em todos os aspectos. Era um evento gratuito, plural, compromissado, política e socialmente com várias causas e movimentos sociais que foram tematizados e representados ao longo das edições, deu espaço pra bandas novas e bandas que já tem estrada na cena goiana, trouxe bandas de fora que tocaram aqui pra um público grande que não teria ido se o show fosse pago. E principalmente pelos laços de amizade e coletividade que marcaram a organização do evento como um todo, desde nós 4 que tivemos a ideia e colocamos em pratica, até a equipe responsável pelo som e as pessoas que trabalhavam no evento vendendo comida e bebida e logico as bandas e o público.
Todo mundo saia satisfeito dali e ia todo o tipo de pessoa, dava pra sentir uma força emanando daquilo ali, uma força de resistência e de coletividade que eu sempre quis passar nesses anos todos em tudo que eu fiz pela cena e que se concretizou ali da maneira mais espontânea. Já fiz os mais variados tipos de evento e até ganhei dinheiro em alguns, mas nenhum jamais vai se comparar ao Ocupem.
Como foi realizar eventos nas antigas casas de rock de Goiânia incluindo os do DCE?
Assim sempre teve uma resistência, pra não dizer um boicote ou uma má vontade de várias casas em aceitar as bandas lançadas pela Two Beers ao longo do tempo, me aceitavam como DJ mas eu não podia tocar com a minha banda e isso sempre ficou atravessado porque eu sempre achei que se desse a oportunidade certa o público iria gostar do Corja ou dos Canalhas tanto quanto gostava das bandas que se apresentavam ali direto, hoje em dia ambas as bandas tem o reconhecimento que merecem por mérito próprio, enquanto várias dessas bandas promissoras e rentáveis pros produtores e donos das casas nem existem mais. Mas criou-se uma elitização dentro do rock goiano e nós fomos os excluídos e tivemos que sempre lutar pelo nosso espaço. Até mesmo nos grandes festivais quando as bandas do selo eram convidadas não era no melhor horário independente do que a banda lançou ou do público que levava. Como nunca dependemos de ninguém além de nos mesmos pra fazer os nossos corres criamos o nosso espaço paralelamente e várias bandas atingiram o reconhecimento nacional tocando em diversas cidades e até mesmo fora do país, do mesmo jeito que as bandas locais que tocavam nos melhores horários nos festivais.
É um tipo de política que eu jamais adotei em eventos, as bandas consagradas estão no mesmo patamar que as bandas novas, principalmente porque as bandas novas podem até serem ruins de começo, mas melhoram com o tempo e trazem um novo público pros eventos que acaba conhecendo e gostando das bandas velhas.
Infelizmente nos últimos anos o número de bandas novas e de gente mais nova na cena diminuiu drasticamente. Tinha época que eu não dava conta de suprir a demanda de bandas que pediam pra tocar nos eventos da Two Beers indo contra ao princípio fundamental do selo que sempre foi abrir espaço pra todo mundo sem hierarquia ou burocracia, e olha que os eventos tinha mais de 10 bandas na maioria das vezes.
A cena era efervescente durante a primeira década dos anos 2000, foi incrível ter vivido e participado dessa época que sem dúvida entrou pra história do rock nacional, estamos inclusive fazendo um documentário comemorativo dos 20 anos da Two Beers que vai contar boa parte dessa história com depoimentos de quem viveu aquilo ali, ainda estamos na fase de recolher depoimentos, é muita gente envolvida e ainda tem a pandemia que impede da gente encontrar as pessoas, mas logo vai estar disponível.
Então da mesma forma que as casas não deixavam a gente tocar nós criamos nossos espaços, primeiro nos dois DCE´s que abriam espaço pros alunos das universidades e já eram tradicionais nos eventos underground da cidade desde muito tempo, logo começou a abrir espaço no Martim Cererê e o Brandão convidou pra fazer eventos lá e daí adotamos o Martim pra eventos maiores e na mesma época o Afonsim abriu o Capim Pub e chamou pra organizar uma agenda só com bandas locais lá e logo começou a rolar uma série de eventos e novos produtores no underground que fizeram o Capim se solidificar como um espaço importantíssimo na cidade, depois o Marcelo abriu o Old Studio pra eventos e rolou muita coisa boa por lá também e além disso ainda tinha o Birita Rock & Atitude que rolava na casa do Bibi, na época batera do Desastre e hoje no Sociofobia, que foi o marco maior dessa época pro underground –
um evento feito no quintal da casa dele, com pingorante a 10 centavos e as bandas mais legais da cidade e até de fora tocando num sábado a tarde pra centenas de pessoas chapadas no meio da Nova Suíça.
Como foi realizar eventos na nossa antiga sede da A Toca coletivo no Jardim América?
Cara foi muito massa, eu amava a Toca acho que junto com o Capim e o Old foram os lugares que eu me sentia em casa. Marcou uma época da cena mais recente, não só a do Jardam mas também a sede no Setor Sul que era menor e eu fiz bastante discotecagem lá.
Rolaram alguns eventos memoráveis lá como o Destrua o Poder, o show do Rot que a Insetus fez, o Periferia S/A, o show de 10 anos do Baba de Sheeva, as duas edições da festa post punk/gótica Dance to the Radio do Glaukushi e lógico o show de 20 anos do Corja que a gente lançou na pandemia como um álbum virtual ao vivo.
O mais massa da Toca era que dava pra fazer uns eventos realmente baratos e acessíveis e a galera ia sempre, tinha tudo pra ser um lugar que duraria muitos anos e renovaria a cena, infelizmente mais uma vez, os tentáculos dos poderosos agiram contra as forças do underground e a Toca foi obrigada a fechar... triste!
Como a pandemia afetou sua vida?
Eu não acho que ninguém em sã consciência nesse pais teve ou está tendo um saldo positivo dessa pandemia, é impossível não se revoltar com o descaso, a desinformação, a ganancia e o fanatismo de muita gente do governo e que apoia ele e até mesmo quem se diz contrário mas não respeita as medidas de isolamento.
Tivemos mais de 600 mil mortos e um deles foi o meu pai, que se foi no dia 8 de setembro desse ano após quase três meses internado lutando contra as consequências da Covid, e isso porque todo mundo aqui em casa ficou isolado e se vacinou e mesmo assim o vírus chegou.
Fora o tanto de conhecidos que perderam parentes e amigos que também se foram nesse tempo todo, não tem como dizer que não afetou, mas eu não vou mentir que tiveram alguns aspectos positivos pra mim apesar de todos os pesares.
Eu dei um tempo de fazer eventos e foquei mais no selo e isso foi muito bom pra poder organizar coisas que eu não tinha tempo pra fazer como o canal do Youtube e as redes sociais, montar uma loja virtual pra vender os materiais, economizei a grana das rés dos shows e lançamos vários discos de bandas de todas as partes do país em parceria com diversos selos que se solidificou em parcerias que deram oportunidades de melhor distribuição pras bandas e ainda fizemos as lives no Old com as bandas goianas em parceria com o Motim Underground, e que fez muita gente de fora ter a oportunidade de ver as bandas tocando, teve banda que deu 3 mil visualizações e isso pro underground é algo muito foda... quem dera, como eu disse, se uma banda daqui pudesse vender 3 mil discos ou tocar pra 3 mil pessoas presencialmente...
E eu recebi o convite pra lançar o livro e acabou que escrevi 50 páginas de complemento pra dissertação que fez com que eu ocupasse bastante o meu tempo em casa, além de ter ficado bastante com meus pais e aproveitado bastante a companhia deles, meio que suprindo os 20 anos que eu passei ocupado com shows, bandas e selo, não esperava, lógico, que meu pai morreria durante esse processo mas pelo menos pudemos aproveitar os últimos momentos de um jeito intenso, o que hoje eu vejo como algo bem positivo. No fundo eu precisava muito de tirar essas férias da cena, pena que foi sob condições tão tristes.
Quais são os seus novos trabalhos e o que você espera para o futuro no meio musical?
A gente acabou de voltar a ensaiar com o Corja, dessa vez na minha casa, largamos os estúdios pagos e voltamos a ser literalmente uma banda de garagem o que tem sido uma experiência bem massa pra gente como banda.
Ficamos um ano e meio parados e estávamos na fase de gravação do quarto disco que irá se chamar “...E Tudo Vai Piorar”, então o mais imediato seria terminar essa gravação e lançar o disco. Já tem três músicas dele rolando no Youtube e nas plataformas de sugar artista já tem um tempo e o resultado foi positivo, teve uma galera que curtiu. De resto eu sigo lendo bastante pra escrever a continuação do meu livro “A sociedade de consumidores e a perversão do Animal Laborans” mas isso é algo a longo prazo e aos poucos me preparando pra retomada das atividades da cena, já tô discotecando de novo e montando banquinha as vezes, mas acho que ainda é cedo pra voltar a fazer eventos, só em 2022 mesmo...
Nós da Toca Coletivo, agradecemos pela sua entrevista e gostaríamos de dizer que sempre é uma honra poder trabalhar e contar sempre com pessoas como você, que fazem a diferença na nossa cidade, sinta um forte abraço de toda nossa equipe.
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